Sexta-Feira 13
Há trinta e cinco anos o Mundo ficava mais rico. Por graça de Deus e pelo prazer de dois seres nove meses antes, lá vinha mais uma carga de trabalhos.
Naquele dia houve choros e alegrias. O mundo podia contar com mais um ser macho para gáudio dos seres humanos sempre à espera de mais um D. Sebastião que venha com ideias para melhorar este planeta tão conturbado.
Dentro destes tempos que distam trinta e cinco anos cresceu, estudou e escolheu a sua forma de vida com base nos valores que lhe foram incutidos por uma só mentora.
Alguém tinha ficado à porta de acordo com um papel da justiça, ficando durante todos estes anos ao sabor da saudade e do afecto que uma criança dá e recebe.
Aquele ser foi crescendo nunca tendo tido a percepção do que é uma família convencional.
Procurou exemplos de vida nos que mais perto estavam passando esses a serem os seus verdadeiros familiares.
Assim tem sido ao longo de todos estes anos de saudade.
Naquele dia treze, talvez por calhar a uma sexta-feira tivesse a solte de estarmos juntos, mas não. Às oito e trinta da manhã, um telefonema de parabéns. Recorda-lo que o tinha agarrado pela primeira vez quando veio ao mundo. Mais uma pequena conversa de circunstância e desligou-se o telefone.
Estava ainda remoendo aquela conversa e as ideias que me tinham vindo à mente quando tocou o telefone. Atendi e do lado de lá era uma minha amiga a convidar-me para ir passar o fim-de-semana com ela.
Há momentos na vida que necessitamos de ficar sós e fazer uma outra mentirinha. Agradeci e disse não poder ser, pois iria passar o fim-de-semana com ele. Ela descobriu logo e só perguntou se ele fazia anos. Não foi preciso falar de quem se tratava para confirmar e desliguei o telefone.
Ainda não tinha tomado o pequeno-almoço e fui preparar uns ovos mexidos e um copo de leite, peguei em tudo e fui tomá-lo no quintal que deita sobre a cidade e lá ao longe vê-se o mar. Lá em baixo ficam os seus hospitais, as suas prisões, as suas morgues, os seus cemitérios, igrejas, calabouços, penitenciárias, hospedarias e albergues, docas, oficinas e quartéis. Seus bairros magníficos e seus bairros pobres. Lá moram os que se embebedam e os que esmolam, os que têm dinheiro, os que não têm trabalho e os que se portam mal.
Os telhados amontoam-se e o sol, que agoniza para lá da barra, põe grandes retalhos de ouro fulvo no agrupamento regular e caprichoso dos edifícios e moradias, afogueando o horizonte num clarão de aurora.
Balança-se no ar pesadamente uma fumarada espessa como um nevoeiro, feita de mil suores, mil respirações, mil hálitos diferentes, desde o hálito do bispo ao do bêbado, do órfão ao do mendigo, do cocheiro ao do sacerdote. E como o fumo, paira no ar o Babel dos ruídos, um rumor confuso feito do ralo das agonias ao estrupido das pragas, do das cantigas ao das disputas. O ruído das máquinas que rangem, chaminés que resfolgam, peitos que respiram, olhos que choram, gargantas que soluçam, corpos que tombam. O desabrochar das violetas nos canteiros e das rosas nas jarras dos salões, subtil como um aroma, mistura-se com o ruído tamborilado e convulso, como um rufo de pandeiro, das carpideiras de enterro.
Os gritos e as pragas dos vencidos baralham-se com as exclamações de triunfo dos vencedores.
E quantas cidades têm o mundo? As cidades quantas almas? As almas quantas tragédias?
Toda a gente tem em si a sua tragédia. As próprias coisas mudas, a lama, o pão e o vinho, a pedra da calçada, a labareda e a gota de água, o verme e a planta a têm.
Pensaste alguma vez na tragédia de uma cama de hospedaria, na das enxergas dos hospitais, na de uma ladra, de uma mortalha ou de uma camisa de rendas? Na tragédia das bandeiras esburacadas de mil batalhas, na dos afogados no alto mar, na dos violinos, na de um náufrago da Medusa ou na da princesa de Lamballe? Tudo é tragédia desde a tragédia do parto à tragédia do estertor.
Quem poderá saber a que há na flauta de um pastor e no leito de uma rainha? A tragédia que houve na alma de Vaillant o anarquista, e na de Tintoreto o pintor? A de Alexandre o grande e a de Sócrates o estóico? Na alma de Jesus e na alma de Marat? Quem sabe o que vai na alma dos clowns e na dos pescadores? Na dos loucos e na dos maus?
A tumba dos pobres, o carro celular, a vala, a serapilheira, o caixão, as costureiras, os vagabundos, as cigarreiras, os emigrantes, os degredados, os cavadores, os homens de génio, as que têm leite nos peitos, as que arrastam um coração sem amor, os ninhos abandonados, tudo, de tudo isto quem sabe a sua tragédia?
E a tragédia das que têm livro as quais a polícia rouba e o amigo espanca?
Hamlet cismou na tragédia da caveira. Quem cismará agora na cidade?
O corpo de uma cortesã tem a mesma tragédia do que um prato de hotel ou um copo de botequim. Por todos servidos, por todos usados, o prato e o copo quando se partem o seu destino é o lixo. A mulher quando envelhece e morre, o seu destino é a vala. Não serão pois, copo, prato e mulher inteiramente iguais?
Algumas vezes a tragédia é caricata, é pândega, dá vontade de rir. Mas nunca ninguém riu da que consigo arrasta.
A cidade, como a vida, é ignóbil. Ali tudo se vende. Quanto custa uma virgindade?
A glória? A fama? Um beijo? Uma alma? Um jantar? Um enterro?
Quem é o senhor do mundo, senhor da cidade, senhor da aldeia, senhor do campo?
O Dinheiro. É ele que faz cantar às almas as óperas da torpeza e do interesse. É essa lama bendita com que se compra o céu. Para o alcançar todos os dias o sol vê crimes inauditos e a humanidade se afadiga e sua e chora. Não há crenças, nem escrúpulos, nem religiões. É aquela luta brutal da tela de Rochegrosse.
A honra? A honra é uma fórmula. É pagar uma letra no seu prazo com dinheiro que se ganhou a traficar escravos; é ser torpe sem que ninguém o diga; é roubar sem que o roubado acuse.
Há mulheres sem honra que todos cortejam, virgindades imaculadas que todos desprezam.
Religiões? A religião é uma comédia cuja representação já dura há séculos. Fez sucesso!
É uma coisa fútil e extravagante que se parece com as histórias dos gnomos e das princesas encantadas. Quem a não tem, compra-a. Para que servem os padres senão para vender a Deus por grosso e a retalho? (Emílio Zola)
Relicários, cultos, milagres, o céu, bênçãos, mitras, báculos, tudo isto está em leilão.
Quem oferece? Quem dá mais?
Às vezes as religiões apregoam entre os homens o Bem, a Paz e a Igualdade. Mentira, tudo mentira! Olhando bem a vida lá está sempre no fundo a sua face austera e verdadeira uma Saint-Barthélemey.
Que tragédia risível, grotesca, bizarra, medonha, sofrida, desesperada e lancinante não é o mundo? A vida? A cidade?
Lá em baixo nas vielas sujas ou no boulevard caro, a luz do gás, que baila a dança de São Vito, põe lívida a carne, lívida a alma, lívido o sentimento.
Há lá ruas inteiras de toleradas, ruas de loiras perfumadas de falas lânguidas como fúcsias, de morenas de beijos tão doces como medronhos, de ruivas de cabelos tão fulvos como o poente. São as filhas dos operários que espancam as mulheres quando chegam à noite a casa, perdidos de bêbados; são as filhas de um ventre que não tinha nome e cujo pai é toda a gente; são aquelas, que tendo vendido tudo se vendem afinal; são a legião enorme e interminável das nascidas não se sabe como, paridas não se sabe aonde, as filhas das ervas, filhas da rua.
Nos bancos sombrios do square há vultos enigmáticos, suspeitos, órfãos cujas almas são os imãs da desgraça de todo o mundo, e à esquina das ruas pedem esmola velhos patriarcais como castanheiros centenários, filhas que fugiram aos pais pelos amantes que as abandonaram, pais que os filhos expulsaram de casa, mulheres que outrora foram belas e faladas.
Embuçada num portal uma criaturinha esguia e franzina como uma santa, silenciosa, estende a quem passa a mão afilada e transparente e todos se afastam com rancor enquanto ela lá continua, no olhar a nostalgia das que passam os dias a tossir.
Há carnes nuas que o frio corta e a nortada arroxeia a par de equipagens arrogantes mais brunidas que a água cristalina; vestes roçagantes e sumptuosas, arminhos e púrpuras, crachás e andrajos. Passeiam na mesma rua a majestade e o andrógino, a bêbada e a duquesa, e encontram-se muitas vezes no mesmo olhar os olhos que são alvoradas e os que são crateras sempre em perpétuas erupções de lágrimas.
E na sombra, há criaturas emagrecidas pelas privações, recantos sinistros de infâmia onde a luz debuxa, às vezes, a traços esguios e esqueléticos, uma caricatura que em lugar de rir faz arrepiar; há gestos de revolta, meio esboçados, repelentes, grotescos, divinos, punhos erguidos, caras crispadas, criaturas capazes de agatanhar os pais e lhes arrancar os olhos para castigo de as ter feito vir ao mundo.
E pensa a gente se foi só para todo este lodo, para esta amargura, que sofreram todas as mulheres as dores do parto.
Bizarramente, ao longe, silenciosa e erma como um túmulo, esgarça-se a brancura de uma casita abandonada, e mais distante, na solidão de uma encosta verde, umas árvores com o seu reumatismo eterno, descarnadas, com seus troncos como aranhas monstruosas são tristes como a noite e como a desolação.
O sol agoniza e a sombra que desce lentamente amortalha a terra com o seu manto funerário. Depois surge no céu a lua, muito grande, branca como a face de uma defunta ou ensanguentada como a cabeça dos guilhotinados. Então por toda a terra se eleva o choro das ribeiras soluçantes, o cicio longo das folhas que se abraçam, enquanto distante um ou outro galo perdido solta o seu grito de alarme como o das sentinelas à volta das prisões.
E eu, debruçado sobre a cidade, escuto o seu respirar e sinto elevar-se da treva densa que abraça o mundo, num surdo fervilhar, o arfar de mil opressos peitos que mal respiram e que semelham o ralo estertoroso de mil agonizantes.
A Minha cidade é assim. Está sem alma e sem gentes
Nelson Camacho D’Magoito
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